Wu Wei: a Chave de Lao Tsé para o Tao

Wu Wei é um ensinamento que está presente ao longo de toda a clássica obra de Lao Tsé, o Tao Te Ching. Neste texto, proponho-me a explicar o que é Wu Wei e detalhar os diferentes significados que essa expressão carrega.

Nicolas Rufino dos Santos
10 min readApr 13, 2022
Lao Tsé (Fonte: O Grande Jardim).

Apesar de ser composta por somente duas sílabas, o termo chinês Wu Wei carrega profundo significado. De forma literal, a expressão é traduzida como “não fazer nada”, “não interferência” ou “não-ação”. Essas palavras significam que não devemos ir contra nossa própria natureza, nosso eu interior, mas identificar o movimento natural da vida para que ela flua da sua própria maneira. Trata-se de viver de forma despreocupada, tranquila e equilibrada.

Isso não significa que devemos ser irresponsáveis com nossos compromissos e obrigações. Pelo contrário. O Wu Wei nos ensina que precisamos reconhecê-los, mas que é suficiente olharmos para eles sem analisá-los com nosso intelecto. Pois é justamente por acreditarmos que podemos resolver tudo a partir do nosso pensamento que impedimos que a vida transcorra em sua própria maneira e resolva nossas questões da melhor forma possível. Ao praticarmos o Wu Wei, viveremos totalmente no tempo presente, não pensaremos no passado e no futuro, e sentiremos uma forte intuição que nos impulsionará para agirmos quando for realmente necessário. Com isso, passamos a nos harmonizar com o Tao, que resolverá nossos problemas de uma melhor forma, e aliviaremos nossa ansiedade por desapegarmos da necessidade de controlar a vida.

Na obra A Sabedoria da Natureza, Roberto Otsu escreve que, ainda que o Wu-Wei seja costumeiramente confundido com passividade e acomodação, o termo consiste em uma postura bastante ativa. Se de um lado a pessoa irá identificar, intuitivamente, as forças que a vida está a levando, por outro, passará a adotar uma conduta de não resistência por confiar que a vida e o Tao o levarão para o melhor caminho possível. Segundo Otsu, “quando todas as circunstâncias naturais levam uma pessoa para certa direção, como se ela estivesse flutuando num rio em movimento vigoroso, o mais sensato é parar de resistir ou de nadar contra a correnteza e deixar-se levar pelas águas”.

Roberto Otsu explica que os povos orientais utilizavam-se dos elementos da natureza para extrair valiosas lições de vida. Para exemplificar essa ideia, o autor cita o comportamento do bambu. Ao observarem esse elemento, os povos orientais aprenderam a importância de serem flexíveis, de não nadarem contra a corrente. Quando o inverno chega, blocos de neve aglomeram-se no bambu, porém, em vez de lutar contra o peso da neve, o bambu cede à pressão do peso, curvando-se até quase encostar o chão para que a neve caia no solo. Após isso, o bambu volta à sua posição inicial, sem se quebrar devido ao peso da neve. Por conta da sua habilidade de flexibilidade e de não resistência, o bambu sobrevive ao peso.

O Tao Te Ching apresenta o termo Wu Wei pela primeira vez em seu segundo capítulo. Nesta passagem, Lao Tsé escreve:

Quando os seres sob o céu reconhecem o belo como belo
Então isso já se tornou um mal
E reconhecendo o bem como bem
Então já não seria um bem

A existência e a inexistência geram-se uma pela outra
O difícil e o fácil completam-se um ao outro
O longo e o curto estabelecem-se um pelo outro
O alto e o baixo inclinam-se um pelo outro
O som e a tonalidade são juntos um com o outro
O antes e o depois seguem-se um ao outro
Portanto

O Homem Sagrado realiza a obra pela não-ação
E pratica o ensinamento através da não-palavra
Os dez mil seres fazem, mas não para se realizar
Iniciam a realização mas não a possuem
Concluem a obra sem se apegar
E justamente por realizarem sem apego
Não passam — Lao Tsé.

Essa passagem pode ser analisada por diversos ângulos, assim como diversas outras apresentadas no Tao Te Ching. Lao Tsé reflete sobre variados temas, como desapego, dualidade, confiança e o relativismo em nossas interpretações pessoais.

Lao Tsé diz que “O Homem Sagrado realiza a obra pela não-ação, e pratica o ensinamento através da não-palavra”. Essa não-ação descrita no Tao Te Ching é o próprio Wu Wei.

No entanto, antes de mergulharmos nos diferentes significados do Wu Wei, é importante lermos sobre a expressão central na obra de Lao Tsé: o Tao.

O que é o Tao?

Ainda que não exista uma tradução única para a palavra Tao, é usual utilizá-la como sinônimo de Caminho. No Tao Te Ching, Lao Tsé nos lembra que o verdadeiro Tao é tão sutil e misterioso que ele nem sequer pode ser definido, descrito ou mesmo explicado com a linguagem. Logo no primeiro verso do capítulo inicial do Tao Te Ching, Lao Tsé diz: “O caminho que pode ser expresso não é o Caminho constante”. Na interpretação de Solala Towler, essa passagem revela que, mesmo que o Tao possa significar “Caminho”, o termo quer dizer também que este caminho não consiste em uma jornada material ou fixa, mas interior. Consoante o Towler, o Tao “significa caminho e, ao mesmo tempo, andar nesse caminho — o caminho que é um caminho sem caminhos”.

Apresentar em palavras a natureza e a sutileza do Tao é um desafio. Theo Fischer, porém, na obra Wu Wei — A Arte de Viver do Tao, escreve que “o Tao é uma dimensão sua e minha. Ela não é acessível ao pensamento, mas pode ser vivida e realizada por nós”. Os taoistas acreditam existir uma dimensão superior que o intelecto humano não consegue alcançar, porém, atingível pela intuição. Quando tentamos solucionar nossos problemas a partir do intelecto, impedimos que uma força maior os resolva de forma melhor e diferente. Os taoistas denominam essa força maior de Tao. O reconhecimento do valor do Tao em nossa vida provém do fato de que o pensamento humano muitas vezes é limitado, parcial e insuficiente para resolver uma série de problemas cotidianos.

Theo Fischer escreve que a não-ação significa permitir que as ocorrências da vida fluam de seu próprio modo, que basta a pessoa observar os acontecimentos, sem interferi-los. O exercício do Wu Wei exige permitir e confiar que o Tao resolverá nossos problemas de forma melhor e diferente do que o pensamento humano. Ou seja, o Wu Wei é a chave para o Tao.

A partir das ideias gerais do Tao e do Wu Wei apresentadas, irei desdobrar os diferentes significados que a expressão Wu Wei carrega. E o primeiro deles é a busca do equilíbrio.

Nós entramos na sociedade do século XXI desprovidos de formas de lidar com a complexidade do nosso tempo. E o conceito de Wu Wei apresenta um desdobramento fundamental para responder a essa complexidade: o equilíbrio e a moderação.

1. Sempre buscar o equilíbrio. Não fazer nada em excesso.

Ao analisar e traduzir o Tao Te Ching, Solala Towler escreve que Wu Wei expressa não exagerar, não tentar forçar algo acontecer. Segundo o autor, o Wu Wei “significa não fazer nada em excesso, como comer ou se exercitar demais, o que causa desconforto na barriga e esgotamento. Significa fazer apenas o suficiente e nada mais”. Desse modo, Wu Wei se trata de equilíbrio.

Por observarem os fenômenos da Natureza, os povos orientais aprenderam a importância de viver com moderação. Roberto Otsu escreve o seguinte:

Na Natureza, não há nada que seja constituído apenas por um aspecto. Não encontramos nenhuma manifestação que seja absolutamente yin ou absolutamente yang. Existem sombra durante o dia e o brilho dos astros durante a noite. Não existe luz total nem treva total. Por isso, viver em equilíbrio significa evitar a polarização para apenas um dos lados; é experimentar todos os aspectos da vida de forma moderada, sem exageros, sem extremismos, e de acordo com sua própria natureza — Roberto Otsu.

Viver com equilíbrio é fundamental. Se você sente que está se esforçando demais para fazer algo acontecer, esse é um sinal de que há algo de errado. E isso não se aplica somente à sua dimensão física, corporal, mas também mental e espiritual.

Lao Tsé nos aconselha a sermos equilibrados em tudo. Na verdade, essa recomendação não é contra a natureza, mas a favor dela, pois ela própria tende ao equilíbrio: claro e escuro, quente e frio, alto e baixo, trabalho e descanso, yin e yang. As manifestações da natureza tendem ao equilíbrio, com opostos que se complementam. E se esses fenômenos se manifestam na natureza, também se revelam em nós, seres humanos, afinal, somos parte dela.

Solala Towler explica que até mesmo emoções excessivas fazem mal à saúde psicológica, emocional e energética dos seres humanos:

Aquele que sabe quando tem o bastante não tem nada com que se preocupar. Outra maneira de dizer isso é que aquele que sabe quando tem o bastante sempre terá o suficiente. Saber onde e quando parar de acumular coisas evita o sofrimento e a desgraça que acompanham a perda ou o desapontamento. Preservar o chi que costumamos desperdiçar com preocupações a respeito do futuro nos libertará, possibilitando-nos usá-lo na vida cotidiana, no autoaperfeiçoamento espiritual. Nós nos sentiremos em paz conosco e com o mundo ao nosso redor. — Solala Towler.

Otsu escreve que a sociedade nos cobra perfeição, que “na sociedade do quanto mais, melhor”. “Perfeição é mutilação”, escreve ele, pois querer ser perfeito em todas as atividades diárias é bastante danoso ao ser humano, pois o organismo necessita de descanso e repouso.

Infelizmente, a sociedade moderna nos condiciona a não termos limites em nada, a nunca nos satisfazermos, seja economicamente, amorosamente, socialmente, profissionalmente, etc. E atitudes como essas são autodestrutivas. Isso não significa que não devemos dar o nosso melhor. Pelo contrário. Podemos e devemos nos esforçar para fazer o melhor trabalho possível, mas, como diz Lao Tsé, “concluir o nome, terminar a obra, retirar o corpo, este é o Caminho do Céu”, ou seja, se por um tempo trabalharmos com afinco, em outro momento, nos retiramos do ambiente, da energia do trabalho, e mudamos nossas atividades, e diminuímos o ritmo, sem levarmos nada ao extremo.

Solala Towler nos oferece dicas valiosas para sermos equilibrados no dia a dia, como comer até nos saciarmos em 80%, e não 110%; não ficar sentado por tempo demais, pois isso prejudica o organismo, que foi constituído para se movimentar. Para equilibrar isso, é recomendável realizar exercícios como caminhada e alongamento; e não comer muitos alimentos crus, principalmente no inverno, uma vez que alimentos crus em demasia podem prejudicar os órgãos digestivos.

No capítulo 9 do Tao Te Ching, Lao Tsé escreve:

O que é mantido cheio não permanece até o fim
O que é intencionalmente polido não é um tesouro eterno
Uma sala cheia de ouro e jade é difícil de ser guardada
Riqueza e nobreza somadas à arrogância
Trazem para si a própria culpa
Concluir o nome, terminar a obra, retirar o corpo
Este é o Caminho do Céu. — Lao Tsé.

2. Viver totalmente o tempo presente, sem ansiar pelo futuro, nem remoer o passado.

Solala Towler escreve que o único momento que temos para viver é o agora, o tempo presente. Enquanto o passado já terminou, o futuro sequer chegou ainda. “O aqui e agora é onde estamos, a única coisa que é real”, escreve o autor.

Embora não se considerasse um taoísta, Jiddu Krishnamurti também sustentava essa visão:

“A ambição em qualquer formato — pelo grupo, pela salvação individual ou pela realização espiritual — é uma ação adiada. O desejo é sempre do futuro; o desejo de tornar-se algo é a inação do presente. O agora tem maior importância do que o amanhã. Todo o tempo é o agora, e entender o agora é estar livre do tempo. Tornar-se é a continuação do tempo, da dor. Tornar-se não contém ser. Ser é sempre no presente e ser é a forma mais elevada de transformação. Tornar-se é apenas continuidade modificada e só existe transformação radical no presente, em ser” — Jiddu Krishnamurti.

Passado e futuro são ideias provenientes do pensamento, portanto, artificiais. O passado é um conjunto de lembranças provenientes da memória e o futuro é um pensamento formado a partir da nossa ansiedade e expectativa. O presente, portanto, é o único espaço físico-temporal em que possamos atuar. Romper o passado que nos limita e o futuro que nos anseia resulta na consciência somente deste momento, afinal, todo o tempo é concentrado no agora.

3. Não olhar diretamente para o “pico da montanha”, para o objetivo final, mas procurar caminhar um passo de cada vez, sem pressa, com moderados passos.

Lao Tsé também cita a não-ação (Wu Wei) no 63º capítulo do Tao Te Ching:

Ação através da não-ação
Atividade através da não-atividade

Sabor através do não-sabor
Grande como pequeno, muito como pouco. — Lao Tsé.

Solala Towler interpreta esta passagem como um verdadeiro caminho para a prática do Wu Wei. “Grande como pequeno, muito como pouco”, significa que as grandes coisas — como os grandes projetos, os grandes relacionamentos — iniciam-se com um pequeno e simples passo.

Já no capítulo 64 do Tao Te Ching, Lao Tsé diz que “uma árvore de grande abraço gera-se de uma fina muda”. Quanto a essa passagem, Towler observa que as grandes obras iniciam-se das pequenas, que “a jornada mais longa começa com o primeiro passo”. E que é necessário não forçar que as coisas aconteçam, não se apegar demais aos desejos e objetivos de vida.

O homem que pratica o Wu Wei vive sem quaisquer esforços ou motivos. Por permanecer com seus pensamentos no tempo presente, não cria expectativas para o futuro. Ele é paciente, suave e caminha lentamente sem quaisquer objetivos, pois a cada passo que dá, sente que cumpriu seu objetivo. O sujeito do Wu Wei cumpre seus afazeres sem quaisquer intenções e os encara moderadamente, com um passo de cada vez. Na verdade, ele pratica o Wu Wei sem a intenção de praticá-lo. Ele percebe que a dor e o sofrimento são inevitáveis, mas, ao invés de as encarar como punições, os vê como estímulos ao seu desenvolvimento. E por não causar dano a ninguém, ninguém causa danos a ele. O homem do Wu Wei autopreserva suas virtudes. Ele se sente satisfeito com pouco, e por não ser ganancioso, possui enorme riqueza interior. O homem que pratica o Wu Wei é preenchido pelo Tao.

Referências utilizadas para o artigo:

  1. Tao Te Ching — O Livro do Caminho e da Virtude (Lao Tsé) — Tradução do Mestre Wu Jyn Cherng.
  2. A Sabedoria da Natureza (Roberto Otsu) — Editora Ágora. Edição do Kindle.
  3. Tao Te Ching —Uma Jornada para o Caminho Perfeito (Solala Towler). Editora Pensamento. Edição do Kindle.

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Nicolas Rufino dos Santos

PhD student in Administration - Ethics, Virtues and Moral Dilemmas in Administration. Florianópolis, SC, Brasil. Contact: nicolasrufino4@gmail.com