Jiddu Krishnamurti: a Inspiração Filosófica das Artes Marciais de Bruce Lee.

Como Bruce Lee usou da filosofia de Jiddu Krishnamurti para recuperar as energias e desenvolver o autoconhecimento nas artes marciais.

Nicolas Rufino dos Santos
7 min readMay 8, 2020
Bruce Lee (Fonte: brucelee.com)

No ano de 1969, Bruce Lee lesionou sua coluna depois de fazer um exercício de aquecimento de forma errada. Os médicos recomendaram repouso absoluto por quase um ano e disseram que ele não poderia praticar artes marciais novamente. Bruce cumpriu as recomendações médicas, mas como era uma pessoa muito ativa, aproveitou o tempo de recuperação estudando livros sobre artes marciais, psicologia e filosofia deitado em sua cama ou sentado numa cadeira de sua biblioteca.

Foi nesse período de repouso em casa que Bruce Lee aprendeu uma série de ensinamentos que mudaram sua vida. As obras de Buda, Alan Watts, Lao Tsé e Jiddu Krishnamurti se tornaram o convívio diário de Bruce Lee. Krishnamurti era um dos autores que mais gostava de ler, e do qual Lee tirou três grandes lições para a vida.

#1 Liberdade

No ano de 1929, Jiddu Krishnamurti decidiu dissolver a Ordem da Estrela do Oriente, do qual era dirigente, na cidade de Ommen, na Holanda, diante de 3.000 membros. O discurso de dissolução de Krishnamurti se tornou uma de suas mensagens mais famosas e influenciam várias pessoas até hoje. Este é o trecho principal do discurso:

“Eu afirmo que a Verdade é uma terra sem caminhos, e vocês não podem alcançá-la por nenhum caminho, qualquer que seja, por nenhuma religião, por nenhuma seita. (…) A Verdade, sendo ilimitada, incondicionada, inacessível por qualquer caminho que seja, não pode ser organizada; nem pode qualquer organização ser constituída para conduzir ou coagir pessoas para qualquer senda particular.” — Jiddu Krishnamurti.

Mas o que significa a frase “A Verdade é uma Terra sem Caminhos”, e qual a relação com Bruce Lee?

Essa frase pode ser resumida em uma palavra: liberdade. O ser humano deve encontrar seu caminho de realização por si mesmo sem pertencer a um grupo, ou se submeter a líderes, ou gurus. Nenhuma organização, mestre ou líder são capazes de libertar os seres humanos. Essas instituições exercem o efeito oposto: se transformam numa muleta, numa dependência que enfraquece os indivíduos, impedindo-os de encontrarem suas trajetórias da realização. A liberdade é incondicional, ilimitada e eterna.

Isso não quer dizer que as organizações em geral não sejam importantes para o funcionamento da sociedade. Como disse Jiddu Krishnamurti: “eu faria uso de qualquer organização que me levasse a Londres, por exemplo; isto é um tipo bastante diferente de organização, meramente mecânica”, disse ele. Mas as organizações espirituais não são capazes de conduzir o homem à espiritualidade. Cada pessoa deve alcançá-la através de um esforço constante ao longo da vida: “Vocês não podem trazer o topo da montanha para o vale. Se querem atingir o cume da montanha, vocês devem atravessar o vale e escalar as escarpas sem medo dos perigosos precipícios”, disse Jiddu Krishnamurti.

Bruce Lee aplicou a filosofia de Krishnamurti nas artes marciais. No livro O Tao do Jeet Kune Do, obra que Lee começou a escrever nesse período de recuperação, lemos o seguinte:

“A verdade não possui caminho. A verdade é viver, portanto, mudar. Não possui uma morada, uma forma, uma instituição organizada, uma filosofia. Quando ver isso, entenderá que essa coisa viva é também o que você é. Você não pode se expressar e se sentir vivo por meio de formas estáticas e movimentos estilizados” — Bruce Lee.

Lee percebeu que um lutador que não se limita a apenas um estilo de luta pode combinar todos os estilos. Para Bruce Lee o combate não era algo estático, mas vivo, fluido, assim como a Verdade e a vida, para Jiddu Krishnamurti.

“Utilizar-se de todos os caminhos é não ser limitado por nenhum deles. Da mesma forma, utiliza-se quaisquer técnicas ou meios que sirvam à sua finalidade” — Bruce Lee.

Durante um tempo Bruce usou um medalhão em seu pescoço com as seguintes frases:

Medalhão de Bruce Lee (Fonte: Brucelee.com)

“Using no Way as Way. Having no Limitation as Limitation”. (Usando nenhum método como método, e não tendo nenhuma limitação como limitação).

Essa frase quer dizer que os métodos são necessários até certo ponto, mas não deve se escravizar por eles. Não se deve usar nenhum método como método definitivo, nem estabelecer nenhum limite como limitação definitiva. “Se há um método, haverá uma limitação”, disse Bruce Lee em uma entrevista por telefone.

“Se aprender um método de luta através de algum estilo, você será capaz de lutar de acordo com as limitações desse método. E isso não é lutar de verdade”. — Bruce Lee.

A Verdade não está nos sistemas ou métodos, mas dentro de você.

#2 Independência

Em uma entrevista para um canal de televisão, Jiddu Krishnamurti disse:

“Você precisa ser a sua própria luz, e não a luz de um psicólogo, de um professor, de Jesus, de Buda, ou a de um bom coração. Você tem ser a sua própria luz, em um mundo que está escurecendo cada vez mais” — Jiddu Krishnamurti.

A mensagem de Jiddu Krishnamurti que atraiu Bruce Lee também pode ser resumida em uma palavra: independência. A confiança e a auto estima são princípios que devem orientar nossas ações.

A dependência é um estado que surge da nossa confusão ao lidar com uma situação difícil. Quando estamos nesse estado de confusão, “queremos que alguém nos tire dele. Então, estamos sempre preocupados com a maneira de escapar ou evitar o estado em que estamos”, disse Krishnamurti. Durante esse processo criamos dependência, que passa a ser nossa autoridade.

O problema é que a dependência é uma forma de escapar do problema, não de resolvê-lo. “Por que somos dependentes? Psicologicamente, interiormente, dependemos de uma crença, uma filosofia (…) Pedimos a outra pessoa um modo de conduta. (…) É possível a mente se libertar desse senso de dependência?”, pergunta Krishnamurti.

Esse ensinamento também influenciou Bruce Lee:

“Há um forte desejo, na maioria de nós, de nos vermos como instrumentos nas mãos dos outros e, assim, livrarmo-nos da responsabilidade de atos que são estimulados por nossas próprias inclinações questionáveis. Tanto o forte quanto o fraco agarram essa desculpa. O fraco esconde sua maldade sob a virtude da obediência. O forte reivindica absolvição proclamando-se o instrumento escolhido por um poder superior — Deus, a história, o destino, a nação ou a humanidade” — Bruce Lee.

“O indivíduo independente é estável, desde que possua auto-estima. A manutenção da auto-estima é uma tarefa contínua que exige todas as forças e recursos secretos da pessoa. Temos de provar nosso valor e justificar nossa existência diariamente.” — Bruce Lee.

Jiddu Krishnamurti

#3 Honestidade

Em uma entrevista ao programa Pierre Burton Show, em 1971, Bruce Lee diz o seguinte:

“Para mim, artes marciais consistem em me expressar total e honestamente. E isso é muito difícil. Para mim seria muito fácil montar um espetáculo e me fazer de durão e tudo isso. Poderia fazer todas essas coisas falsas, entende? Poderia ensinar movimentos muito elegantes. Mas conseguir expressar-se honestamente, sem mentir para mim mesmo, expressar-se com toda sinceridade, isso, meu amigo, é muito difícil de fazer”. — Bruce Lee

Ser honesto consigo mesmo exige autoconhecimento, e esse autoconhecimento é um processo pelo qual você conhece a si mesmo em relação com outra pessoa. Afinal, “o autoconhecimento surge quando estamos conscientes de nós mesmos no relacionamento, que mostra o que somos de momento a momento. O relacionamento é um espelho no qual enxergamos como realmente somos”, disse Krishnamurti.

“O autoconhecimento não pode ser conseguido através de ninguém, de nenhum livro, confissão, psicologia ou psicanalista. Ele tem que ser descoberto por você mesmo porque é sua vida.” — Jiddu Krishnamurti.

“O autoconhecimento é a base do Jeet Kune Do, por ser eficaz não apenas para a arte marcial do indivíduo, mas também para sua vida” — Bruce Lee

Depois de quase um ano de repouso físico por conta de seu problema nas costas, Bruce Lee escreveu para um amigo contando a história: “Mas com toda a adversidade vem uma benção, porque um choque age como uma lembrança para si mesmo que não devemos cair em uma rotina estagnada. Não é a situação que é o problema. É como você reage a isso”.

Jiddu Krishnamurti foi um escritor, filósofo e orador que investigava temas universais que envolvem a condição humana, como a criatividade, medo, relacionamentos, autoconhecimento e liberdade. Amigo do escritor Aldous Huxley, que o chamava de “autoridade intrínseca”, Krishnamurti fugia de rótulos como guru, santo ou líder e falava de forma simples e direta para o ouvinte, sem qualquer persuasão ou imposição de ideias. Proferiu palestras ao longo de vários países durante boa parte de sua vida até 1986, ano de sua morte.

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Nicolas Rufino dos Santos

PhD student in Administration - Ethics, Virtues and Moral Dilemmas in Administration. Florianópolis, SC, Brasil. Contact: nicolasrufino4@gmail.com